Hipergrafia Nostálgica

Em memória do meu nunca-esquecido-cachorro-Mike e das coisas que eu tenho perdido ao longa da vida.

segunda-feira, 8 de abril de 2013

Às minhas avessas


Respeita meu silêncio!
Que aqui dentro cômodo cômodo é caro
Arquitetura rara, muito esmero.
É construção de sal, é metralha de sal, estrutura de sal,
A base é sal

Toma cuidado com tua saliva em minhas paredes
Porque a mim basta as lágrimas
Basta minha loucura
Essa maldita ressaca de sobriedade

Respeita meu silêncio
Fica longe do meu sagrado
Pois tua tentativa de fluência no meu rio não é acatada
Ela é incomoda

Não tenta fluir em mim
Em mim, não!
Pois sou um filtro, uma peneira esburacada
Mas meu apreço vem de dentro
Sou das coisas valiosas e das ordinárias
Mas não sou de você

Eu me permito assim, parada, cristalina
Retrato inacabado com ar de arte final
Mas não sou aberta às tuas invasões
Sou plena às minhas avessas
Às minhas!

quinta-feira, 18 de outubro de 2012

Como assim?


E, de repente, sentiu vontade imensa de dizer a palavra perronha. Nem sequer tinha conta do significado, mas, como necessidade, porque esta considera qualquer querer sagrado. E não vou dizer que tentou racionalizar isso, porque não tentou. Perronha, disse. Mas lembrou que teria que dizer algo depois, algo que deveria dizer desde que começou a pensar em causar confusão por querer dizer perronha. Então deu a resposta, surpresa, sim, mas sem capacidade de manifestar isso: Perdi. Perdi o gato. Também não quis dizer que perderia o filho, mas disse: Perdi o gato, mas são seria como perder um de nossos filhos. Quênia, que não é civilização ou constelação, é país. É isso que creio que seja. Também não cogitou na hora de levantar. Nem olhou pra trás. Que é que se perde quando se deixar de estar? Preferiu torta de chocolate.

sexta-feira, 7 de setembro de 2012

Sobre câncer e café frio




Estou chapada. Putamente chapada. Enquanto escrevo, meu cachorro me espreita, entediado, com sombras listradas no  corpo. Estou sentada no meu projeto de jardim esperando o café ficar bom. Meu pai faz um bom café. Mais cedo, enquanto vagueava embriagado pelo nosso psedo-jardim,-estamos felizes tentando construir um - pedi-lhe uns tragos de seu derby suave. Ele é relutante e eu  até gosto do sentimento de fazê-lo preocupado, com conversas sobre vícios, estendendo seu braço queimado e muitas veias puladas, como um pai. Eu acho bonito e acho que as tinha desde cedo, essas veias. Desacredito.  Mas não ligo, só quero outros tragos do seu cigarro enquanto tento convecê-lo banalmente de que este é o meu caráter de hoje e é o que teremos. Difícil, o velho. Volta, dizendo que não encontra a vasilha do café e pergunta, mais um vez, sobre a ‘’fortuna das casas, o dinheiro da COHAB, a cor do meu carrão e essas coisas’’. Está querendo me enrolar, também não quer me dar café, disse que essas coisas viciam. Quero café, oras. Hoje estou no meu dia de puta, dia de jazz.  Me deixe HIGH. Esse lugar, esse banco, ao som de um brega do outro lado da rua, exatamente onde eu gostaria de estar. Nem sequer desejo que ponha seu Zé Ramalho Ao Vivo. 


 Estou assim, estou bem. Hoje eu estou. Sem aula, sem amigos, sem namorado e o ainda com libido, mas perfeitamente bem. Assim, meio zen. Nem Olinda, nem voz de vizinha e ninguém... Não... Pera. Pessoas no portão. Como isso me irrita, ser importunada num momento tão grandioso.   ''Prenda o cachorro, ele olha feio pra mim. Não vou entrar não, ele vai me atacar.'' Nessa hora eu lanço meu olhar pra ele, para Preciosa – meu filhote de pitbull-, como quem dissesse  ''Avance, oras. É o que esperam de você''. Tenho esses acessos de maldade vez por outra. Mas ele continua com seu olhar interrogativo, a cabeça larga meio inclinada, as orelha em pé, o rabo balançando meio de leve. Só a perdoo porque nos trouxe torta. Molhadíssima. Falta qualidade, é certo, mas foi bem-vinda, afinal comida costuma descer como pedra quando estou assim.  Minha mãe vem apreciar a paisagem, satisfeita. Deve adivinhar que estou escrevendo, põe fé em mim, mas que em Jesuisinho, talvez.  Mais cedo assistimos, eu e ela,  a um romance água com açúcar. Estou meio ordinária, me comovendo com esses romances.  Um mamão, o filme.  Nada que eu não tivesse visto antes, mas me ajudou a criar uma ótica engraçada a respeito das pessoas: todos se comovem diante daquela pobre moça brega porque, coitada, tem  leucemia. Tem pouco tempo de vida e é digníssima por querer coisas grandiosas para o seu pouco tempo de  vida. Ter seu nome em uma estrela, que coisa majestosa! Estar em dois lugares ao mesmo tempo, como você não havia pensado nisso? Eu também pensei nas coisas magníficas que quero pra mim. Um livro muito bom, entrar pra Academia de Letras, como ''até'' Paulo Coelho entrou, fazer uma descoberta científica, ter um amor parisiense e arrebatador, ser musa de algum cantor que escreva alguma música pra mim e as moças que a escutem se perguntem ''mas quem foi a criatura divina para quem esse tal fulano também grandioso escreveu essa música''?. Remédios, misticismo, viagens astrais, conhecer, saber muito, muito e de tudo, conservar muitas fotos e nunca, nunca pensar que existe algo mais valioso que elas.  Mas meu pai vem até mim de novo, pergunta sobre o dinheiro da casa. O cachorro se inquieta, peço que me traga uma água, um café, outro cigarro,  a sua não interferência.  O cachorro roda querendo morder seu próprio rabo. O velho volta, vem falar sobre a casa novamente. Tenho vontade de explodir. A amnésia dele me irrita. Mas me aproveito de seu cigarro  ensopado sem que ele perceba. 

 De volta às minhas reflexões,  imagino como se pode achar querer conquistar coisas extraordinárias  pra si mesmo como uma coisa de realmente de se espantar.  O fato é que a vida é muito curta. Curtíssima. Me pergunto se minhas amigas sabem disso quando olho pras suas caras ingênuas. ''Sabem que, como a coitada cancerígena do filme, vocês também vão morrer?'' Muito rápido.  E é tão rápido que às vezes nem nos damos conta disso. Meu pai, às vezes, de porre, se põe a pensar nisso, nessa droga de vida. E são choros, relatos de sonho subindo ao céu e nos dando até mais.  Injusto, sim.  Injustíssimo termos ciência disso.  O cachorro vem xeretar o que estou fazendo.  É impertinente e abusivo, o danado.   A vida passa, sim. E não somos eternos e nem seremos eternizados. Estamos no mesmo barco, pai. Tento consolá-lo, sempre, evitando pensar que eu também não saberei como lidar com isso. Nunca.  Mas não somos preciosos? Eu, você? Temos fotos, temos lembranças. Fomos parte do universo. Não é bonito, isso, ser parte do universo? Ele vai sentir minha falta, vai sentir falta dos netos que talvez nem chegue a ver.  E praguejamos, lamentamos nossa brevidade. E não sei mais se acho isso lindo, de sermos finitos.  Honestamente, tenho vontade queimar meus morangos mofados, as neuras que me pareciam tão interessantes, as músicas que me despertavam um sentimento de uma liberdade fingida. Tenho urgência de vida agora, me dá o cigarro.  Estamos vivos agora. Estamos vivos, e pensantes. Capazes de sentir. E saio do meu pedestal. Me vejo estúpida e burra. Cavei minha própria cova. Como minhas divas decadentes. E aí me vem toda aquela história de essência, o infernal professor de filosofia com sua risada exagerada, seu pescoço pra trás, sua voz de locutor de rádio.  SENTIR. Sentir, dou na lata. Me conformo. Sinto o vento nesse momento e me faz bem, como se fosse a única a reparar como o vento é bom. Como se o sereno fosse mágico. Como alguém que viaja à França e traz de lá camisa  e chaveiros da torre eiffel, eu trago o sensação do vento, a divindade que é sentir e a magia que é pensar, eu trago da vida tudo isso.  Me basta.  E na minha condição, de sentimentalista, extremista e querendo salvar meu couro, prefiro achar que os outros estão doentes. Pensar é colocar uma corda no pescoço. Por algum motivo, quero salvar o meu. E é assim que  vou concluindo, que as pessoas estão doentes. Irreversivelmente doentes. Qualquer câncer desses aí,  câncer de cretinice, talvez.  Não sei se mais eu, não sei se mais ela.  Mas a cota foi esgotada. Meu pai chega com o café, finalmente. Estranhamente frio. Vou em busca de mais um cigarro. 

quarta-feira, 11 de abril de 2012

Cumplicidade

Eu carrego as pomba-giras dentro do couro. Sem férias, sem trégua e sem dia santo.  São vinte e quatro horas no meu ouvindo, feito mosquito, zunindo, reflexivas, interrogativas, dotadas de uma razão estranha. E racional, sim. ‘’Manifeste-se, lute, caia, machuque-se. Propositalmente? Por que não? Quem mais nesse mundo teria esse direito senão tu?’’ E acho digno manifestar, cair, lutar, machucar, mostrar, borrar, retroceder, parar, avançar, ir de lado ou sem cuidado, escandalizar, ir de bege ou vermelho, conjugar, sem mais ligar. A troco de quê? São bem claras: nada pedem além de cumplicidade, que eu as nutra. 

terça-feira, 1 de novembro de 2011

Eu e ela

Ouço chuva cair
Molhar roupas, desenterrar desejos
E eu aqui de dentro dessa janela, seca
Imagino como é ser chuva
Molhar, colocar pra correr
E molhar mais ainda quem corre
Ou acariciar a face de quem me acolhe

Nesses dias de chuva me chegam memórias absurdas
Como a ordem, não licença
Licença não
Ordem para  achar alguém e dançar

Na ausência de pessoas
Dancei com a solidão que já me é tão simpática
Só me falta ser corpuscular

De outra, numa outra valsa
Descobri em meu corpo sensibilidade ao som
O som que também não se materializa
Atrofia minha moral
Me ilude e distorce

Hoje, sem valsa e nem desejo
A chuva que cai lenta
Só me possibilida vaguear entre o que é belo e inexistente
Colocar enfeite em coisas que eu viviu
Somos boas parceiras, eu e chuva


quinta-feira, 9 de junho de 2011

Kozmic Blues



    • O celular despertou às cinco e trinta, exatamente como - não - se era de esperar. Ela se virou para um lado, para o outro, na esperança de voltar ao sonho. Mais cinco ou dez minutos para aproveitar, em vão. Nem sequer lembrava o que esteve sonhando e o porquê disto lhe ocupar tanto. De qualquer forma, cinco ou dez minutos depois que o celular desperta implica em muito tempo de atraso. Cinco ou dez minutos completamente jogados fora, como ela percebeu.
    • Levantou-se. Sentiu uma dor tremenda quando seus pés tocaram o chão. Descalça e desprotegida.
    • O dia ainda estava escuro. Espiou pela janela e viu o céu completamente enfeitado por nuvens cinzas. Gostaria de ficar em casa, assistir a seu filme favorito e se comover mais uma vez. Mas esse prazer lhe custaria muito caro. Realizar seu pequeno capricho de sonhar por pouco mais de trinta minutos, pois nunca conseguia acordar muito depois das seis, lhe obteria outra falta, mais cobranças e todo o sentimento de fracasso. Costumava gostar de dias como esse quando era menor e não precisa ir à escola. Passava a manhã inteira vendo desenhos animados, agasalhada no seu pijama.
    • Escovou os dentes evitando encarar seu reflexo no espelho. Olhava fixamente a torneirinha ordinária e maneira da qual a água jorrava, fria. Tão fria! E forte, ávida por sair, por se expandir. Tão cedo...
    • Costumava ser uma pessoa conformada a maior parte do tempo. Prática, expansiva e impetuosa. Mas às vezes era invadida e envolvida por uma sensação estranha que mudava as suas impressões sobre as coisas, sobre as pessoas, sobre si e sobre a vida. Era assim mesmo que ela dizia. ''Impressão, impressão''. Falava hesitando, como quem não está certo do que diz, misteriosamente, com o olhar perdido. Impressões fantásticas sobre coisas absurdamente normais. E era em dias como esse que sequer conseguia olhar-se no espelho. Dias em que a magia das coisas parecia ter desaparecido e tudo não passava de total hostilidade do destino dos fatos. Temia notar-se naturalmente normal ou um pouco mais gorda. Temia ouvir as hostilidades fatais e inevitáveis.
    • Sentiu muito frio quando começou a se despir. O shortinho de algodão escorregou nas suas pernas, junto com a calcinha grande e confortável. Ao tirar um dos pés do chão, sentiu uma tontura que a fez se desequilibrar. Debruçou-se na pia, ainda com a cabeça baixa.
    • Abriu o chuveiro, esperou por algum tempo. Contou até dez, criou a coragem necessária para se lançar na água gelada. Enquanto se esfregava sem vontande alguma, ouviu um barulho atrás de si. Creme hidratante caído no chão, consequência, talvez, de seu desequilíbrio. Uma embalagem de um marrom brilhoso, sinuoso, combinando perfeitamente com o piso de cerâmica marrom. Obstante, não muito mais interessada, continuou mecanicamente seu momento íntimo. Limpa isso e limpa aquilo...
    • Enrolou-se na toalha. Seus dentes batiam um no outro, estava com frio. Topou com ele, o potinho marrom jogado propositalmente no seu caminho pelo destino. Não custaria nada apanhá-lo, é claro; e estava prestes a fazê-lo, se não fosse tomada de súbito pela sensação estranha que implica na impressão das coisas. Aquilo lhe pareceu extremamente abusivo. Isso, naturalmente, era o que acontecia nas horas em que tinha que ser provada , quando se sentia contrariada pelas suas obrigações; quando, por exemplo, era obrigada a saber quanto equivale X, compreendendo que de nada vale aquilo ali, senão para o aumento de seu sentimento de frustração diante de um mundo que fala a mesma língua dificílima, que ela nunca conseguiu compreender.
    • Desviou-se do caminho, o banheiro era bastante grande, e começou sua luta frenética com o jeans. Isso não a deixou feliz.
    • Apesar disso, não se considerava uma pessoa fútil. Covarde era a palavra correta. Estava habituada a fazer o que sempre fazia, e fazia sem pensar, como estudava e comia, embora que fosse muito mal. Fazia porque não encontrava boas razões para não fazer, se é que essas existiam. Fazia porque no mundo é isso que fazem e não há mundo de outra forma. Fazia, embora não gostasse, embora não tivesse as boas razões para deixar de fazer e ainda assim sentisse essa desobrigação. Fazia porque ainda acordava, porque ainda levantava da cama, porque ainda explicava suas faltas e atrasos. Fazia mesmo desconfiada de que de alguma forma não precisava fazer. E pensou nisso mais uma vez, quando encheu seu copo de suco e teve vontade de trocar o café light por qualquer porcaria, quando pensou em trocar um dia de aula por um dia na cama ouvindo música, quando pensou em ser uma minhoca rastejando sobre a superfície terrena e sob a luz pálida do dia chuvoso, e aí não pensou mais.
    • Voltou ao banheiro, onde terminou de se vestir. Reparou no hidratante caído no chão e o que era indiferença pura se tornou objeto de sua curiosidade. Mas mais uma vez, desviou-se.
      Apesar de não ter interesse em si mesma aquela manhã, delineou os olhos, tornou vermelhas as maçãs dos rostos e bagunçou um pouco mais o cabelo que quase não estava preso. '' Don't make no difference, babe. No, no, no. And it never ever will. Hey!'' Riu de si mesma. Pensou em toda sua família que ainda dormia. Três pessoas prontas pra responder por aquele insulto sem o menor problema.
    • Parou alguns instantes ainda olhando. Foi até a cozinha e voltou com uma maçã, viu-se de relance e saiu. Ainda virou-se para trás e estava lá o tal frasquinho. Combinava perfeitamente com o marrom do piso. Apagou a luz, fechou a porta e riu não se sabe bem de quê. Penso que do destino.




segunda-feira, 7 de fevereiro de 2011

É isso.

  • Pais fora de casa sabe-se lá até quando, irmão fora de órbita sabe-se lá o porquê. Sozinha em casa. Sem erva pra melhorar, sem namorado pra namorar, sem saco pra forçar imaginação sexual. Música, quem sabe? Eu sei. Eu gosto de música. Música pra tristeza, música pra felicidade, música até pra nada. Como agora. E água. Água pra banho, água pra fingir de vodka. Água sempre. Para um filhote ousado de elefante chamado Késia. Um cigarro pode ser, e é, consumido até o fim apenas no cinzeiro. Mas nada de livros, porque hoje quem filosofa também sou eu, o próprio espírito cósmico. E quem duvida? Eu não.
  • Entro no banheiro sem precisar fechar a porta atrás de mim, e o som se infiltra nas gotas frias espalhadas pelo meu corpo. Tudo devidamente absorvido. Muito mais pela toalha. Eu posso ser o desejo da minha avó, nova e só. Tudo o que ela nunca foi, tudo que ela nunca será. Mas eu ainda posso ser o que ela é, com tudo que eu nunca gostaria viver. Mais fraca, mais gasta, de pulmão sujo e alma lavada. É isso. E, quem dera que fosse sempre e apenas isso.