Hipergrafia Nostálgica

Em memória do meu nunca-esquecido-cachorro-Mike e das coisas que eu tenho perdido ao longa da vida.

sábado, 6 de novembro de 2010

Menina coçando os olhos

Alma estarrecida
Falsas declarações escorrendo gosmentas pelas paredes
Propósitos e despropósitos coexistindo
Olhos no espelho
Olhos na janela
Boca derramando palavras soltas num tom triste
Um lápis sambando entre os dedos tamborilantes
Frases distorcidas num papel torcido
Uma agonia se instala na altura dos seios arfantes
Olhos no relógio
Olhos na janela
Alma na espreita
Ela se sentou ao meu lado
Pôs as mãos nos meus joelhos
E aconchegou minha cabeça nas suas pernas
Arrotou-me suas fumaças
Durma, querida
A solidão veio me fazer companhia esta noite
Não era ela que eu estava esperando

quinta-feira, 30 de setembro de 2010

The blind man kissing my hands

- The blind man kissing my hands.
- Quê?
- Robert diz isso. Diz isso naquele cenário gótico.
- The blind man kissing my hands, é?
- É, é sim. Naquele cenário, hein, um homem cego beijando suas mãos.
- Fantastic!
- A strange day. Vou pôr pra você ouvir.
Houve uma pausa. A atmosfera sendo empurrada de mim pra ele e dele pra mim. Dez segundos mudos. No fundo apenas a voz de Caetano. Minha pomba, Jr, deixe-o cantar. Deixo-o cantar e o mundo ficará odara. Você vai ver. Enterro minha cabeça no travesseiro. Há uma pequena distância entre o meu colchão e o dele, ambos atirados no chão da sala. Sua expressão é de desapontamento, desapontado como uma criança. Tenho vontade de abraçá-lo. Um abração. Tenho dito um monte de NÃO a ele ultimamente. E isso não pode ser bom.
- C'est trop fort! - Rolo para o outro lado, giro por cima dos livros, me espreguiço. - Você gostaria, Jr, de ter um homem beijando-lhe as mãos num cenário gótico?
Observo minhas pernas iluminadas pela luz do sol que entra pela porta da sala. O esmalte vermelho implora para que eu o remova das unhas. Balanço-as no ar. Imagino os átomos se movendo, dançando entre minhas pernas. Está ficando mesmo, ficando tudo odara. E os átomos estão dançando. Eu não posso vê-los, mas fecho os olhos e imagino-os. Imagino pequenas bolinhas maciças. Gosto da ideia de átomos como bolinhas maciças.
Será que ele gostaria de ter um velho para lhe beijar as mãos também? Mas quem gostaria, Roberta, de ter as mãos beijadas por um velho cego naquele palco horrendo do Pornography? Ninguém. Ninguém. Ninguém. E eu gosto de dizer esse nome porque imagino um lugar vazio. Hawaii, hein?
Pra falar a verdade, eu sempre gostei de contatos afetivos com pessoas estranhas. Geralmente com velhos e crianças. Sorrisos, abraços, beijos nas mãos são capazes de me deixar mole. Lembro-me de uma vez. Lá estava um velho prostrado a minha frente com seu sorriso de poucos dentes e os olhos brilhantes derramados sobre meu rosto. Estava trancada no meu casulo aquele dia e saí apenas para lhe estender minhas mãos pequenas. E ele as beijou, beijou mais de uma vez, beijou-as com paixão. E tudo se desfez numa gracinha. Se eu não deixaria passar nem o velho moribundo? Aquela pessoa já teve as mãos beijadas? Coitado!
- Hein? - insisto.
Vejo-o muito distante de mim com os olhos ocupados num livro. Tem um grafite avermelhado na mão direita. Qu'est-ce que c'est? Qu'est-ce que c'est? Seus olhos no livro. Tiro As meninas de baixo de mim e o repouso no meu ventre. Não, ninguém nunca beijou suas mãos. Abro o livro. Já reparou como Caetano fala inglês bem? Fala inglês muito bem, muito claramente. Mas você já pode mostrar a música. Não queria mostrar a música? Ham? Você já pode, benzinho, colocar Robert Smith para me encher o saco. Vamos. Você não vai colocar? Hein?

domingo, 8 de agosto de 2010

Passatempo

Passa um segundo
Passa o minuto
Passa o ponteiro
Fica o ponto

Passa a hora
Passa o dia
Passa a vida
Fico eu

Passa a noite
Passa o ponteiro de novo
Fica o ponto
Fico eu
Passando o tempo

Passa, tempo
Passa agora
E agora também
Vai passando

Que eu vou deixando o tempo passar
Na certeza de que terei que passá-lo novamente
E ficarei passando
Passando o tempo feito passatempo
Passa, tempo

terça-feira, 3 de agosto de 2010

Hoje

  • Mais cedo pensei numa sala maior, numa viagem e cinco filhos. Em entrar num curso de costura - é sempre bom! - e aprender a dar ponto sem precisar de nó. Pensei em ligar pra minha mãe e perguntar se é viável criar desde cedo um bebê vegetariano. Se ele me perdoaria quando visse os amigos comerem coxinha sem cair duros na fila da cantina.
  • Talvez algum dia eu vá à Itália, mas só se eu ganhar muito bem. Talvez visite o Vaticano, tente roubar um artefato e seja presa pela Guarda Suíça. Talvez eu use drogas sintéticas e estoure o limite do cartão com uma mísera bolsa. Talvez um dia eu realize o meu sonho de passar dias inteiros sem uma peça de roupa. Talvez um dia eu encontre meu Marcelo Camelo e o leve para conhecer a minha mãe.
  • Hoje eu não quero saber de nada que não tenha minha vontade, que não tenha meu dedo, meu dengo, meus desejos, minhas fantasias.
  • Hoje eu vou relaxar, vou encapar livros, fazer amor comigo mesma. Mais tarde, quem sabe?, talvez, se não estiver me sentindo muito cheia, me pague um sorvete. Dê algumas voltas na praça sem cansar até cansar. Se alguém ligar, eu já sei, digo estou muitíssimo ocupada, que a tarde me fez uma chamada urgente e irrecusável.
  • Talvez amanhã eu termine de lavar a louça e acabe a pesquisa. Talvez algum dia eu mande ao inferno essa vida. Outro dia. Hoje eu fico mesmo é por aqui, assim mesmo.

segunda-feira, 12 de julho de 2010

Aferindo e ferindo o passado

Acalma, menina
Não há palavra bonita que hoje saia de ti
Nem um sentimento extravagante que seja capaz de te queimar a pele e os olhos
Ah sim, foram os olhos dele!
Brilhavam instantes atrás
E tu os apreciava
Teu desejo era que fossem teu espelho particular
Agora com as mãos dele nas tuas
Com seus lábios pressionados contra os teus
Teus olhos malcriados, por que evitam os dele agora ?
Percebeu, de perto, que são fingidos como os teus
Não era o espelho que querias ?
Aceita
Afasta-te e vai-te embora com a tua distorção de passado
Agora ferida

Vendo-me

Sou mulher ordinária
Dessas que fácil se compra
Que se vende por poema sem rima
E sorrisos

Não sou elitizada
Ideal, já não sou de me impor
Nem de opor
Conservo-me calada

Ainda tenho minhas preferências
Gosto de longas cartas
De caixas vazias e presentes sem embrulho
De noites muito frias
E de conversas sem fim
Mas eu nada exijo além da ida sem volta

Sou mulherzinha ordinária
Mais fácil me leva o que não vacilar
O que me der certeza
De para sempre de mim me separar.

Vaidade da alma

Quero ser invisível
Nada de transparência
Transparente já sou
E é por isso que me notam

Venero a nudez
A exposição das formas
A exibição da intimidade
Que além de pelos
Nada mostra

Quero olhares pensativos
À procura de um sinal, talvez
E principalmente que ninguém veja no outro mais que um espelho de si
E que por fim haja apenas olhos
E tédio

Abortando um amor

Cresce hoje em mim um amor
Não é céu nem é mar
Também não é solidão
É palpável

Que alegria, Deus!
Ele tem mãos feitas para se encaixarem em outras
E quem dera que fossem as minhas!
Tem lábios
Coração
E fala

Na minha pele ele arde
Queima
E até já dói

Amanhã ele não terá mãos nem terá lábios
Amanhã ele será só passado
Penso que nem arderá tanto
Que queimará de leve
Mas talvez continue doendo