Hipergrafia Nostálgica

Em memória do meu nunca-esquecido-cachorro-Mike e das coisas que eu tenho perdido ao longa da vida.

terça-feira, 1 de novembro de 2011

Eu e ela

Ouço chuva cair
Molhar roupas, desenterrar desejos
E eu aqui de dentro dessa janela, seca
Imagino como é ser chuva
Molhar, colocar pra correr
E molhar mais ainda quem corre
Ou acariciar a face de quem me acolhe

Nesses dias de chuva me chegam memórias absurdas
Como a ordem, não licença
Licença não
Ordem para  achar alguém e dançar

Na ausência de pessoas
Dancei com a solidão que já me é tão simpática
Só me falta ser corpuscular

De outra, numa outra valsa
Descobri em meu corpo sensibilidade ao som
O som que também não se materializa
Atrofia minha moral
Me ilude e distorce

Hoje, sem valsa e nem desejo
A chuva que cai lenta
Só me possibilida vaguear entre o que é belo e inexistente
Colocar enfeite em coisas que eu viviu
Somos boas parceiras, eu e chuva


quinta-feira, 9 de junho de 2011

Kozmic Blues



    • O celular despertou às cinco e trinta, exatamente como - não - se era de esperar. Ela se virou para um lado, para o outro, na esperança de voltar ao sonho. Mais cinco ou dez minutos para aproveitar, em vão. Nem sequer lembrava o que esteve sonhando e o porquê disto lhe ocupar tanto. De qualquer forma, cinco ou dez minutos depois que o celular desperta implica em muito tempo de atraso. Cinco ou dez minutos completamente jogados fora, como ela percebeu.
    • Levantou-se. Sentiu uma dor tremenda quando seus pés tocaram o chão. Descalça e desprotegida.
    • O dia ainda estava escuro. Espiou pela janela e viu o céu completamente enfeitado por nuvens cinzas. Gostaria de ficar em casa, assistir a seu filme favorito e se comover mais uma vez. Mas esse prazer lhe custaria muito caro. Realizar seu pequeno capricho de sonhar por pouco mais de trinta minutos, pois nunca conseguia acordar muito depois das seis, lhe obteria outra falta, mais cobranças e todo o sentimento de fracasso. Costumava gostar de dias como esse quando era menor e não precisa ir à escola. Passava a manhã inteira vendo desenhos animados, agasalhada no seu pijama.
    • Escovou os dentes evitando encarar seu reflexo no espelho. Olhava fixamente a torneirinha ordinária e maneira da qual a água jorrava, fria. Tão fria! E forte, ávida por sair, por se expandir. Tão cedo...
    • Costumava ser uma pessoa conformada a maior parte do tempo. Prática, expansiva e impetuosa. Mas às vezes era invadida e envolvida por uma sensação estranha que mudava as suas impressões sobre as coisas, sobre as pessoas, sobre si e sobre a vida. Era assim mesmo que ela dizia. ''Impressão, impressão''. Falava hesitando, como quem não está certo do que diz, misteriosamente, com o olhar perdido. Impressões fantásticas sobre coisas absurdamente normais. E era em dias como esse que sequer conseguia olhar-se no espelho. Dias em que a magia das coisas parecia ter desaparecido e tudo não passava de total hostilidade do destino dos fatos. Temia notar-se naturalmente normal ou um pouco mais gorda. Temia ouvir as hostilidades fatais e inevitáveis.
    • Sentiu muito frio quando começou a se despir. O shortinho de algodão escorregou nas suas pernas, junto com a calcinha grande e confortável. Ao tirar um dos pés do chão, sentiu uma tontura que a fez se desequilibrar. Debruçou-se na pia, ainda com a cabeça baixa.
    • Abriu o chuveiro, esperou por algum tempo. Contou até dez, criou a coragem necessária para se lançar na água gelada. Enquanto se esfregava sem vontande alguma, ouviu um barulho atrás de si. Creme hidratante caído no chão, consequência, talvez, de seu desequilíbrio. Uma embalagem de um marrom brilhoso, sinuoso, combinando perfeitamente com o piso de cerâmica marrom. Obstante, não muito mais interessada, continuou mecanicamente seu momento íntimo. Limpa isso e limpa aquilo...
    • Enrolou-se na toalha. Seus dentes batiam um no outro, estava com frio. Topou com ele, o potinho marrom jogado propositalmente no seu caminho pelo destino. Não custaria nada apanhá-lo, é claro; e estava prestes a fazê-lo, se não fosse tomada de súbito pela sensação estranha que implica na impressão das coisas. Aquilo lhe pareceu extremamente abusivo. Isso, naturalmente, era o que acontecia nas horas em que tinha que ser provada , quando se sentia contrariada pelas suas obrigações; quando, por exemplo, era obrigada a saber quanto equivale X, compreendendo que de nada vale aquilo ali, senão para o aumento de seu sentimento de frustração diante de um mundo que fala a mesma língua dificílima, que ela nunca conseguiu compreender.
    • Desviou-se do caminho, o banheiro era bastante grande, e começou sua luta frenética com o jeans. Isso não a deixou feliz.
    • Apesar disso, não se considerava uma pessoa fútil. Covarde era a palavra correta. Estava habituada a fazer o que sempre fazia, e fazia sem pensar, como estudava e comia, embora que fosse muito mal. Fazia porque não encontrava boas razões para não fazer, se é que essas existiam. Fazia porque no mundo é isso que fazem e não há mundo de outra forma. Fazia, embora não gostasse, embora não tivesse as boas razões para deixar de fazer e ainda assim sentisse essa desobrigação. Fazia porque ainda acordava, porque ainda levantava da cama, porque ainda explicava suas faltas e atrasos. Fazia mesmo desconfiada de que de alguma forma não precisava fazer. E pensou nisso mais uma vez, quando encheu seu copo de suco e teve vontade de trocar o café light por qualquer porcaria, quando pensou em trocar um dia de aula por um dia na cama ouvindo música, quando pensou em ser uma minhoca rastejando sobre a superfície terrena e sob a luz pálida do dia chuvoso, e aí não pensou mais.
    • Voltou ao banheiro, onde terminou de se vestir. Reparou no hidratante caído no chão e o que era indiferença pura se tornou objeto de sua curiosidade. Mas mais uma vez, desviou-se.
      Apesar de não ter interesse em si mesma aquela manhã, delineou os olhos, tornou vermelhas as maçãs dos rostos e bagunçou um pouco mais o cabelo que quase não estava preso. '' Don't make no difference, babe. No, no, no. And it never ever will. Hey!'' Riu de si mesma. Pensou em toda sua família que ainda dormia. Três pessoas prontas pra responder por aquele insulto sem o menor problema.
    • Parou alguns instantes ainda olhando. Foi até a cozinha e voltou com uma maçã, viu-se de relance e saiu. Ainda virou-se para trás e estava lá o tal frasquinho. Combinava perfeitamente com o marrom do piso. Apagou a luz, fechou a porta e riu não se sabe bem de quê. Penso que do destino.




segunda-feira, 7 de fevereiro de 2011

É isso.

  • Pais fora de casa sabe-se lá até quando, irmão fora de órbita sabe-se lá o porquê. Sozinha em casa. Sem erva pra melhorar, sem namorado pra namorar, sem saco pra forçar imaginação sexual. Música, quem sabe? Eu sei. Eu gosto de música. Música pra tristeza, música pra felicidade, música até pra nada. Como agora. E água. Água pra banho, água pra fingir de vodka. Água sempre. Para um filhote ousado de elefante chamado Késia. Um cigarro pode ser, e é, consumido até o fim apenas no cinzeiro. Mas nada de livros, porque hoje quem filosofa também sou eu, o próprio espírito cósmico. E quem duvida? Eu não.
  • Entro no banheiro sem precisar fechar a porta atrás de mim, e o som se infiltra nas gotas frias espalhadas pelo meu corpo. Tudo devidamente absorvido. Muito mais pela toalha. Eu posso ser o desejo da minha avó, nova e só. Tudo o que ela nunca foi, tudo que ela nunca será. Mas eu ainda posso ser o que ela é, com tudo que eu nunca gostaria viver. Mais fraca, mais gasta, de pulmão sujo e alma lavada. É isso. E, quem dera que fosse sempre e apenas isso.