Hipergrafia Nostálgica

Em memória do meu nunca-esquecido-cachorro-Mike e das coisas que eu tenho perdido ao longa da vida.

sexta-feira, 7 de setembro de 2012

Sobre câncer e café frio




Estou chapada. Putamente chapada. Enquanto escrevo, meu cachorro me espreita, entediado, com sombras listradas no  corpo. Estou sentada no meu projeto de jardim esperando o café ficar bom. Meu pai faz um bom café. Mais cedo, enquanto vagueava embriagado pelo nosso psedo-jardim,-estamos felizes tentando construir um - pedi-lhe uns tragos de seu derby suave. Ele é relutante e eu  até gosto do sentimento de fazê-lo preocupado, com conversas sobre vícios, estendendo seu braço queimado e muitas veias puladas, como um pai. Eu acho bonito e acho que as tinha desde cedo, essas veias. Desacredito.  Mas não ligo, só quero outros tragos do seu cigarro enquanto tento convecê-lo banalmente de que este é o meu caráter de hoje e é o que teremos. Difícil, o velho. Volta, dizendo que não encontra a vasilha do café e pergunta, mais um vez, sobre a ‘’fortuna das casas, o dinheiro da COHAB, a cor do meu carrão e essas coisas’’. Está querendo me enrolar, também não quer me dar café, disse que essas coisas viciam. Quero café, oras. Hoje estou no meu dia de puta, dia de jazz.  Me deixe HIGH. Esse lugar, esse banco, ao som de um brega do outro lado da rua, exatamente onde eu gostaria de estar. Nem sequer desejo que ponha seu Zé Ramalho Ao Vivo. 


 Estou assim, estou bem. Hoje eu estou. Sem aula, sem amigos, sem namorado e o ainda com libido, mas perfeitamente bem. Assim, meio zen. Nem Olinda, nem voz de vizinha e ninguém... Não... Pera. Pessoas no portão. Como isso me irrita, ser importunada num momento tão grandioso.   ''Prenda o cachorro, ele olha feio pra mim. Não vou entrar não, ele vai me atacar.'' Nessa hora eu lanço meu olhar pra ele, para Preciosa – meu filhote de pitbull-, como quem dissesse  ''Avance, oras. É o que esperam de você''. Tenho esses acessos de maldade vez por outra. Mas ele continua com seu olhar interrogativo, a cabeça larga meio inclinada, as orelha em pé, o rabo balançando meio de leve. Só a perdoo porque nos trouxe torta. Molhadíssima. Falta qualidade, é certo, mas foi bem-vinda, afinal comida costuma descer como pedra quando estou assim.  Minha mãe vem apreciar a paisagem, satisfeita. Deve adivinhar que estou escrevendo, põe fé em mim, mas que em Jesuisinho, talvez.  Mais cedo assistimos, eu e ela,  a um romance água com açúcar. Estou meio ordinária, me comovendo com esses romances.  Um mamão, o filme.  Nada que eu não tivesse visto antes, mas me ajudou a criar uma ótica engraçada a respeito das pessoas: todos se comovem diante daquela pobre moça brega porque, coitada, tem  leucemia. Tem pouco tempo de vida e é digníssima por querer coisas grandiosas para o seu pouco tempo de  vida. Ter seu nome em uma estrela, que coisa majestosa! Estar em dois lugares ao mesmo tempo, como você não havia pensado nisso? Eu também pensei nas coisas magníficas que quero pra mim. Um livro muito bom, entrar pra Academia de Letras, como ''até'' Paulo Coelho entrou, fazer uma descoberta científica, ter um amor parisiense e arrebatador, ser musa de algum cantor que escreva alguma música pra mim e as moças que a escutem se perguntem ''mas quem foi a criatura divina para quem esse tal fulano também grandioso escreveu essa música''?. Remédios, misticismo, viagens astrais, conhecer, saber muito, muito e de tudo, conservar muitas fotos e nunca, nunca pensar que existe algo mais valioso que elas.  Mas meu pai vem até mim de novo, pergunta sobre o dinheiro da casa. O cachorro se inquieta, peço que me traga uma água, um café, outro cigarro,  a sua não interferência.  O cachorro roda querendo morder seu próprio rabo. O velho volta, vem falar sobre a casa novamente. Tenho vontade de explodir. A amnésia dele me irrita. Mas me aproveito de seu cigarro  ensopado sem que ele perceba. 

 De volta às minhas reflexões,  imagino como se pode achar querer conquistar coisas extraordinárias  pra si mesmo como uma coisa de realmente de se espantar.  O fato é que a vida é muito curta. Curtíssima. Me pergunto se minhas amigas sabem disso quando olho pras suas caras ingênuas. ''Sabem que, como a coitada cancerígena do filme, vocês também vão morrer?'' Muito rápido.  E é tão rápido que às vezes nem nos damos conta disso. Meu pai, às vezes, de porre, se põe a pensar nisso, nessa droga de vida. E são choros, relatos de sonho subindo ao céu e nos dando até mais.  Injusto, sim.  Injustíssimo termos ciência disso.  O cachorro vem xeretar o que estou fazendo.  É impertinente e abusivo, o danado.   A vida passa, sim. E não somos eternos e nem seremos eternizados. Estamos no mesmo barco, pai. Tento consolá-lo, sempre, evitando pensar que eu também não saberei como lidar com isso. Nunca.  Mas não somos preciosos? Eu, você? Temos fotos, temos lembranças. Fomos parte do universo. Não é bonito, isso, ser parte do universo? Ele vai sentir minha falta, vai sentir falta dos netos que talvez nem chegue a ver.  E praguejamos, lamentamos nossa brevidade. E não sei mais se acho isso lindo, de sermos finitos.  Honestamente, tenho vontade queimar meus morangos mofados, as neuras que me pareciam tão interessantes, as músicas que me despertavam um sentimento de uma liberdade fingida. Tenho urgência de vida agora, me dá o cigarro.  Estamos vivos agora. Estamos vivos, e pensantes. Capazes de sentir. E saio do meu pedestal. Me vejo estúpida e burra. Cavei minha própria cova. Como minhas divas decadentes. E aí me vem toda aquela história de essência, o infernal professor de filosofia com sua risada exagerada, seu pescoço pra trás, sua voz de locutor de rádio.  SENTIR. Sentir, dou na lata. Me conformo. Sinto o vento nesse momento e me faz bem, como se fosse a única a reparar como o vento é bom. Como se o sereno fosse mágico. Como alguém que viaja à França e traz de lá camisa  e chaveiros da torre eiffel, eu trago o sensação do vento, a divindade que é sentir e a magia que é pensar, eu trago da vida tudo isso.  Me basta.  E na minha condição, de sentimentalista, extremista e querendo salvar meu couro, prefiro achar que os outros estão doentes. Pensar é colocar uma corda no pescoço. Por algum motivo, quero salvar o meu. E é assim que  vou concluindo, que as pessoas estão doentes. Irreversivelmente doentes. Qualquer câncer desses aí,  câncer de cretinice, talvez.  Não sei se mais eu, não sei se mais ela.  Mas a cota foi esgotada. Meu pai chega com o café, finalmente. Estranhamente frio. Vou em busca de mais um cigarro.